terça-feira, abril 06, 2010

Ônibus 174


Na construção do documentário, José Padilha produziu a trama da forma “texto sobre o texto”. Ele reuniu fragmentos de imagens que foram gravadas no dia do seqüestro pela TV Bandeirantes, TVGlobo e Rede Record. Utilizou entrevistas com personagens que estavam ligados ao fato, além de proporcionar ao telespectador uma breve narrativa sobre o ocorrido e a vida do seqüestrador Sandro do Nascimento.
O filme permite ao telespectador entender o episódio por meio de uma narrativa cronológica do fato, intercalada com depoimentos de especialistas e de pessoas ligadas ao acontecido e ao próprio seqüestrador. O documentário retrata duas histórias ao mesmo tempo: a da trajetória da vida de Sandro do Nascimento e a outra a partir de imagens intercaladas que constroem um diálogo e apontam para possíveis causas geradoras da violência no Brasil.
O filme Ônibus 174, ao mesmo tempo em que constrói, ele recria o contexto social. Imagens aéreas do Rio de Janeiro, os morros, favelas, mansões, condomínios de luxo, o ambiente onde Sandro passou sua infância e adolescência, seus amigos e parentes... Ônibus 174 poderia ter se baseado simplesmente no fato ocorrido - o do assaltante que toma de refém um ônibus com alguns passageiros. Mas o autor decidiu contar a história através da vida de Sandro do Nascimento. Como pano de fundo, José Padilha utiliza documentos da polícia, trechos de depoimentos de pessoas ligadas ao seqüestrador e até os próprios reféns.
E vai além: mostra o perigo em que a sociedade está exposta num país de poucas oportunidades e de situações de desigualdade social extremas. O documentário nos mostra que Sandro Nascimento é o típico caso de “cidadão” que vive à margem da sociedade: drogado, violento, favelado, negro e criminoso.
É nesse ambiente que o autor conduz o filme e descreve a vida de Sandro do Nascimento. E, sobretudo, explica a relação do infrator com a cidade do Rio de Janeiro, com seus amigos, a polícia, com as instituições para menores infratores e prisões. Sobre esse contexto se torna possível entender quem é o seqüestrador e porque ele faz e fala coisas de modo tão particular.
Apesar da espetacularização feita pelos meios televisivos, a mídia conseguiu exercer a função de vigilância, se postando como “vigia” do exercício do poder. Segundo Mayra Gomes, em seu livro “Jornalismo e ciência da linguagem”, “é a partir do papel da vigilância que o jornalismo é pensado como um quarto poder, exercido paralelamente pela vigilância sobre os três outros que constituem o Estado de Direito”. As imagens, que foram divulgadas ao vivo pelas TVs, revelaram um jornalismo não apenas vigilante, mas revestido de um sensacionalismo exacerbado – um espetáculo que, de certa forma, inibiu a ação da polícia, que teve várias oportunidades para dar um desfecho mais favorável ao incidente. Mas como atirar num bandido enquanto milhões de pessoas estavam diante de seus televisores? No caso do Ônibus 174, a mídia exerceu o seu papel de informar, mas expôs cenas fortíssimas à sociedade, que exorbitaram as funções de comunicação e vigilância.
A ação falha da polícia abre uma série de discussões. Não nos cabe aqui questioná-la. Mas o papel da mídia e a forma como as informações foram levadas aos receptores também devem ser repensadas. Afinal, se o jornalismo se põe como um “quarto poder” deve, assim como os poderes instituídos pelo Estado, coibir os seus próprios abusos.

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